O Hemiciclo está aberto
No dia 4 de setembro foi lançado um site “que visa aproximar os cidadãos da democracia e de uma das suas mais importantes instituições – a Assembleia da República”. O Hemiciclo abre uma janela para que se possa acompanhar a “democracia [portuguesa] em tempo real”.
Como se pode ler no site, “[a] informação (…) disponibilizada pretende contribuir para uma melhor compreensão do processo parlamentar, para uma análise mais aprofundada da interação entre as entidades que o integram, e para um escrutínio mais rigoroso dos representantes eleitos”.
“Um dos registos mais importantes fornecidos neste espaço é o sentido de voto de cada representante eleito sobre cada decisão tomada.” Mas no site há muito mais informação.

Informação sobre a posição dos vários deputados relativamente a um projeto de lei colocado a votação
Apesar dos seus poucos dias de vida, o Hemiciclo tem recebido muita atenção (ver aqui, aqui e aqui, por exemplo). Só no seu primeiro dia recebeu cerca de 20 mil visitas e ultrapassou as 79 mil visualizações de páginas individuais. Numa altura em que tanto se fala de transparência, esta reação tão positiva não deve ser de estranhar. De estranhar será talvez o tempo que demorou para que surgisse em Portugal um projeto destes.
E agora que surge, vem pelas mãos de dois cidadãos: Luís Vargas, designer industrial, e David Crisóstomo, estudante de economia.

Informação sobre a composição e atividade de uma das bancadas parlamentares (clique na imagem para ver a imagem ampliada)
Ana Neves: Acham que um projeto destes deveria ser criado pelas próprias instituições da democracia ou faz sentido que seja criado, de forma independente, pela sociedade civil?
Luís Vargas e David Crisóstomo: A resposta não é simples. É evidente que as instituições têm deveres a cumprir nestas matérias, mas também é verdade que a sociedade civil também os tem, pois é a primeira interessada no bom relacionamento dessas instituições com os cidadãos.
AN: No site está uma vasta lista de agradecimentos. Que apoio tiveram da Assembleia da República?
A lista de agradecimentos refere-se a todos aqueles que nos ajudaram e acompanharam na fase de construção da plataforma. Aqui incluímos os serviços da Assembleia da República, a quem recorremos várias vezes para que nos fosse fornecida informação referente a alguns diplomas que estava em falta.
AN: Qual a reação dos deputados e dos partidos a um projeto como este?
LV e DC: A reação dos deputados e dos partidos tem sido até agora bastante positiva. Temos recebido várias mensagens de felicitação de atuais e antigos membros do parlamento, de todos os quadrantes políticos.
AN: Pode argumentar-se que na falta de transparência há dois lados: um que não mostra e outro que não vê. O vosso projeto está a tentar colmatar a primeira questão. Quem sentem que se vai interessar pelo que colocam agora mais à mostra?
LV e DC: Numa perspetiva temporal da civilização humana (e mais filosófica…), a democracia representativa é um regime extraordinariamente recente e que importa preservar e aprofundar. O caminho futuro não será certamente o de um afastamento, mas sim o do prosseguimento e da evolução desse regime. Aquilo que sentimos é que muitas vezes se confundem as críticas aos “jogadores” com as críticas ao “jogo”, e esse é um caminho perigoso: o “jogo” em questão é responsável pelos maiores avanços civilizacionais da nossa espécie. É um regime perfeito? Não. Mas a solução passará sempre pela sua reinvenção e melhoramento, não pelo seu abandono.
Sabemos bem que a perceção das pessoas não muda de um dia para o outro e que a valorização de um direito, não raras vezes, só ocorre quando o perdemos. Mas também sabemos que todos, como cidadãos, temos um papel a desempenhar.
No espaço mediático, por razões inerentes ao próprio modelo de negócio em que a comunicação social assenta, há um forte pendor sensacionalista que tende a explorar sentimentos mais negativos. Importa, por isso, que os cidadãos tenham também acesso à informação sem filtros, de modo a poderem conhecer toda a realidade antes de construir o seu pensamento.
AN: Inspiraram-se noutros projetos para a realização do Hemiciclo?
Sim, já conhecíamos a existência de outras plataformas com objetivos similares, que também se dedicam ao escrutínio da atividade de outras câmaras parlamentares, nomeadamente das votações dos deputados. Um dos grandes exemplos, com o qual colaboramos foi o VoteWatch Europe, que se dedica às atividades dos Membros do Parlamento Europeu.
AN: Onde vão buscar os dados que alimentam o Hemiciclo.pt?
LV e DC: O Hemiciclo não utiliza nenhum tipo de dataset. Os dados são todos obtidos via webscraping do website oficial da Assembleia da República. Em alguns casos (raros) os dados são corrigidos e complementados (manualmente) pela nossa equipa recorrendo a outras fontes.
O script responsável pelo webscraping é a componente mais complexa da plataforma, uma vez que tem de processar dezenas de milhares de páginas HTML diariamente, sendo capaz de preencher e submeter formulários de pesquisa de um modo autónomo e de gravar a informação estruturada segundo as nossas necessidades na nossa base de dados.
Para além de recorrerem ao site da Assembleia da República como fonte principal de informação, os criadores utilizam também dados da Comissão Nacional de Eleições, do arquivo do Governo e dos sites das bancadas parlamentares e dos partidos.
LV e DC: De momento não disponibilizamos nenhum dataset mas temos planeada a implementação de uma API REST de acesso livre (mas limitada no número de pedidos por segundo) no futuro. Temos também a capacidade de gerar datasets customizados à medida das necessidades de potenciais interessados, bem como as respectivas visualizações interactivas dos mesmos.
AN: Que dificuldades sentiram?
LV e DC: Do lado técnico da implementação da plataforma, o maior desafio foi o desenvolvimento do webscraper automático. O scraping de sites como o do parlamento.pt em ASP.NET (uma framework lançada há 15 anos) não é trivial, especialmente quando é necessário submeter formulários, gerir cookies, etc. Para conseguirmos manter uma base de dados atualizada, era imperativo ter esta componente a funcionar sem falhas e com boa performance, sem sobrecarregar o servidor do parlamento.pt nem o nosso.
O segundo desafio técnico foi estruturar e arrumar todos os dados de modo a que pudessem ser acedidos e processados rapidamente. A plataforma depende de queries em que temos de cruzar muita informação ao mesmo tempo (presenças, votações, diplomas, declarações de voto, deputados, etc.) e era crítico conseguirmos tempos de execução apropriados para uma experiência web fluida.
Do lado operacional, as dificuldades residiram no acesso à informação de algumas votações, nomeadamente as votações eletrónicas na Assembleia da República ou as votações de deputados que divergiram das suas bancadas na XI Legislatura, dado que à época não era prática os seus nomes serem anunciados pela Mesa da Assembleia. Outro contratempo que nos dificultou o trabalho foi a multiplicidade de nomenclaturas atribuídas pelo Parlamento para um determinado tipo de ação, assim como pequenos erros e lapsos nos próprios registos do portal.

O site Hemiciclo apresenta uma “lista ordenada dos deputados que em maior número de vezes votaram de forma distinta do sentido de voto indicado pelo seu grupo parlamentar”
AN: Quais os próximos passos?
LV e DC: O desenvolvimento da segunda iteração da plataforma já se iniciou e contempla os seguintes ítens (não necessariamente por esta ordem):
a) Expandir o alcance do repositório de três legislaturas (XI -XIII) para oito (VI – XIII), abrangendo assim uma janela temporal que vai de 1991 até ao presente.
b) Desenvolver uma secção exclusiva para a exploração e o escrutínio dos Orçamentos do Estado, que inclua todas as suas alíneas e respetivas propostas de alteração por parte dos grupos parlamentares e assembleias regionais.
c) Criar uma nova secção que se debruce exclusivamente sobre o trabalho efetuado nas comissões parlamentares – local onde ocorre a maior parte do trabalho desenvolvido na Assembleia da República.
Os criadores do Hemiciclo estão também a planear um encontro com os promotores do Transparência Hackday Portugal que há muitos anos batalham por alguns dos mesmos propósitos. O Demo.crática é provavelmente o projeto que melhor exemplifica esses propósitos comuns.
Para além do Demo.crática e do VoteWatch Europe já referidos, há vários outros projetos que em vários países também procuram iluminar a atividade democrática dos representantes eleitos:
- no Brasil, Vote na Web, Radar Parlamentar;
- na Europa, It’s Your Parliament;
- no Reino Unido, TheyWorkForYou;
- em França, NosDeputés.fr.
AN: Que sonhos têm para o Hemiciclo?
LV e DC: O sonho que temos é o mesmo de todos os que criam ferramentas – que elas sejam usadas e que sejam úteis. A nossa esperança é que, a longo prazo, o contacto com a plataforma e com outros conteúdos que pretendemos divulgar possa contribuir para mudar algumas perceções mal-informadas que os cidadãos possam ter da natureza e do funcionamento do nosso regime constitucional democrático.
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