Tecnologia como Facilitadora de Processos Participativos

Giovanni Allegretti é italiano mas há muito que vive em Portugal onde é investigador sénior no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra. A sua larga experiência na área dos orçamentos participativos tem sido ganha e tem contribuído para enriquecer inúmeros projetos em Portugal e não só.

Logo do projeto EMPATIAUm desses projetos é o EMPATIA – Enabling Multichannel Participation Through ICT Adaptation financiado pela União Europeia através do programa de pesquisa e inovação do Horizon 2020. Apesar de formalmente ter terminado em março deste ano, continua vivo pelas mãos de várias das entidades envolvidas nos pilotos. Segue-se um breve resumo do projeto, preparado com base nas respostas de Giovanni Allegretti a um conjunto de perguntas e em material que facultou.

Giovanni Allegretti

Giovanni Allegretti

“O EMPATIA nasceu da observação de que os processos participativos poderiam ser pervertidos com a tecnologia porque a tecnologia é introduzida sobretudo para a redução dos custos dos municípios e também o custo do cidadão que pode fazer as coisas a partir de casa. Isto pode transformar o processo, que é um processo de construção de comunidade, num processo que é apenas um somatório de preferências individuais dos participantes. Nós queríamos evitar isto e refletir com os municípios e os outros atores territoriais da importância de construir processos híbridos que possam continuar a misturar momentos online e offline e então a melhorar, com isso, a riqueza e a demo-diversidade dos processos.”

O projeto, que vem na sequência do trabalho académico de Michelangelo Secchi, aluno de Giovanni Allegretti, tinha quatro objetivos principais:

  • desenvolver e testar uma plataforma flexível que sirva de apoio a diversos processos participativos multicanal;
  • desenvolver uma componente de monitorização para promover a transparência e a responsabilização;
  • investigar o impacto de diferentes modelos de participação na inclusão e eficácia;
  • promover a consolidação de comunidades com capacidade de auto-reflexão.

Assim, o EMPATIA surge como um banco de três pernas: uma de serviços (a plataforma), uma política (o diálogo), e outra académica (a análise).

 

A plataforma

A plataforma foi pensada usando como referência o orçamento participativo (OP), um dos mais complexos processos participativos, e considera dois ciclos: um ciclo de discussão e aprovação; e um ciclo de construção.

Foi desenvolvida com um foco especial nas pequenas autarquias. São estas que, mesmo com vontade de usar a tecnologia para alavancar a participação cívica, não têm disponibilidade orçamental para investir na aquisição e manutenção de plataformas comerciais.

Como tal, a plataforma EMPATIA é constituída por um conjunto de módulos fáceis de adaptar. Foi desenvolvida em código aberto (open source) e está disponível gratuitamente no GitHub.

A lista de módulos e funcionalidades da plataforma foi sendo moldada pelos contributos da rede de parceiros espalhados pelo mundo. Um exemplo é a participação através de SMS. Esta funcionalidade foi identificada como especialmente relevante para alguns países africanos onde o SMS está muito mais difundido do que o uso da Internet.

 

O diálogo

Para a equipa do EMPATIA era importante dinamizar um “diálogo sobre a relação ambígua que existe entre o poder político local e as plataformas digitais de participação”, diálogo esse que deveria envolver as autarquias mas também as empresas responsáveis pelas atuais soluções comerciais. No caso português, as duas empresas principais, responsáveis por 90% das plataformas de orçamentos participativos em Portugal, são a Libertrium e a WireMaze.

“EMPATIA não é apenas plataforma: o EMPATIA é uma forte discussão sobre os princípios éticos ligados à plataforma”

 

A análise

A forte componente académica do EMPATIA visava garantir a sólida avaliação dos pilotos e a consequente análise crítica para, daí, derivar conclusões relacionadas com a utilização de tecnologia em modelos de participação.

Nunca se pretendeu, contudo, que a preocupação com a avaliação terminasse com o fim do EMPATIA. Para que sejam viáveis outras análises e a comparação com dados de outros projetos, a equipa instalou uma aplicação open source para visualização e gestão de dados (DKAN – Drupal Knowledge Archive Network) e aí publicou os conjuntos de dados gerados pelos pilotos do EMPATIA.

Mas a componente de análise não se ficou por aqui. O projeto empenhou-se em demonstrar a importância da avaliação e da monitorização contínua dos processos participativos. Esta prática de avaliação é frequentemente posta de lado porque as autarquias “têm apenas a força de mandar o projeto para a frente mas não têm força de o analisar, não têm hábito de monitorizar e avaliar, e sobretudo têm medo, às vezes, de avaliar”. A questão do medo está geralmente associada à forma como os “dados possam ser usados contra eles pela oposição política ou pela comunicação social”.

 

Área de analytics da plataforma EMPATIA

A plataforma EMPATIA oferece dados sobre as pessoas que com ela interagem. Ao acompanhar estes dados, nomeadamente os demográficos, as entidades podem identificar a necessidade de intervir para, por exemplo, conseguir uma melhor representatividade da população

 

Pilotos

Inicialmente estavam previstos 4 pilotos– Lisboa, Řičany na República Checa, Wuppertal na Alemanha e Milão em Itália. Contudo, o projeto acabou por considerar mais 18 experiências que envolveram entidades nesses mesmos 4 países mas também em Espanha, no México, nos Estados Unidos da América e em Moçambique.

No caso específico de Portugal, e para além da autarquia de Lisboa inicialmente planeada, realizaram-se mais 4 pilotos: autarquias de Condeixa, Lagoa e Cascais, o Orçamento Participativo Jovem de Portugal, e uma sessão do Orçamento Participativo de Portugal. Este interesse deveu-se, em parte, ao dinamismo da Rede de Autarquias Participativas.

Cada um dos pilotos apresentou desafios distintos, motivando novos desenvolvimentos na plataforma, a criação de dispositivos de hardware auxiliares, etc.

 

Kiosks criados pelo EMPATIA

Kiosks criados para interação nas sessões presencias do projeto EMPATIA

 

No caso do Orçamento Participativo Jovem de Portugal (OPJP), o Ministério da Educação e o Instituto Português do Desporto e Juventude tinham necessidade de acompanhar o que se passava nas diferentes escolas. Assim, foi criado um módulo multi-tenancy para que, debaixo de um processo global, possam existir processos “locais” com as suas especificidades. Isto permite respeitar o contexto de cada escola e, simultaneamente, dar ao Ministério a facilidade de uma análise transversal dos dados de todas as escolas.

Para além disso, uma das grandes preocupações neste piloto foi criar condições para que fosse fácil gerir e agilizar as interações entre os diversos Ministérios que deviam avaliar a viabilidade das propostas feitas pela população. Através do painel de controlo criado é possível aceder ao registo de todas interações o que confere uma alta rastreabilidade ao processo.

Apesar de o projeto EMPATIA ter terminado, o OPJP, tal como 17 outros pilotos, irá continuar a utilizar a plataforma criada no âmbito do projeto.

A Câmara Municipal de Lisboa tinha uma plataforma específica para o Orçamento Participativo e outras plataformas para vários outros processos participativos. Neste piloto, foi criada uma plataforma agregadora que, através de um ponto único de entrada e de um login único, reduz o esforço de participação para o cidadão.

Esta agregação de ferramentas de participação tem também o mérito de contribuir para promover uns processos participativos à boleia de outros. Por exemplo, num inquérito aos participantes da iniciativa Lisboa Ideia, 43% disseram ter descoberto o projeto por acaso enquanto faziam uma busca pelo Orçamento Participativo de Lisboa ou pela plataforma A Minha Rua.

A plataforma EMPATIA vai continuar a ser usada pela Câmara Municipal de Lisboa como base para o website agregador Lisboa Participa.

 

Lisboa Participa

A plataforma EMPATIA foi usada pela Câmara Municipal de Lisboa para criar um website agregador e ponto comum de acesso a todas as plataformas de participação disponíveis para os munícipes lisboetas

 

Já na Alemanha, o piloto do Município de Wuppertal destacou-se principalmente pela abordagem que o município adotou para definir os contornos do orçamento participativo. Na verdade, o processo do OP foi cocriado pelos munícipes que foram convidados a contribuir para a definição das regras, do papel da plataforma no processo, etc.

 

EMPATIA - Wuppertal

Plataforma EMPATIA no piloto do município alemão de Wuppertal

 

A atual presidência da Comune di Milano assumiu a liderança na autarquia milanesa no meio do processo do OP de 2015. Isto é, no final do ciclo de aprovação e antes do ciclo de construção. Era importante sossegar os munícipes de que os projetos vencedores iriam ser devidamente implementados. O primeiro módulo do EMPATIA a ser implementado neste piloto foi o de monitorização para que os cidadãos pudessem acompanhar a evolução dos projetos.

Para além da monitorização dos projetos, o piloto de Milão também percebeu a importância de monitorizar os dados de acesso e participação. Cedo se aperceberam de que o perfil de utilizadores era muito homogéneo (homens, 30 – 40 anos, com licenciatura) e pouco representativo da população milanesa. Uma discussão destes dados com o presidente da Câmara e com os vereadores, informou a decisão de investir mais dinheiro na comunicação e de organizar 30 eventos presenciais nos bairros de Milão para capturar um público diferente. Esta aposta teve um enorme impacto na diversidade demográfica dos cidadãos que acabaram por se envolver e participar neste processo.

 

Milano Partecipa

Em Milão, Itália, a plataforma EMPATIA foi inicialmente criada para que os munícipes possam acompanhar a execução dos projetos vencedores do orçamento participativo

 

O Empaville

O Empaville é um jogo de simulação que nasceu para testar componentes hardware do projeto: máquinas de votação para usar nas assembleias públicas, por exemplo. No entanto, a equipa rapidamente percebeu o potencial pedagógico do jogo. Percebeu também que podia ser usado, antes de arrancar o OP, para ajudar a debater os méritos e riscos de diferentes modelos de participação.

 

Jogo Empaville num tablet

O jogo Empaville foi usado em muitas sessões presenciais, nomeadamente com alunos de várias escolas portuguesas

 

Atualmente a equipa está a tentar financiamento para novos projetos europeus nos quais o Empaville teria um lugar de destaque: como elemento pedagógico mas também como instrumento de construção do modelo participativo. Um outro objetivo destes futuros projetos seria transformar o Empaville num produto autónomo já que, atualmente, só pode ser usado em sessões presenciais e com o apoio de um membro da equipa.

 

Resultados

Do ponto de vista formal, o projeto EMPATIA recebeu nota máxima da Comissão Europeia. No entanto, há muitas outras formas de avaliar os resultados de um projeto.

Para Giovanni Allegretti, um dos resultados mais importantes foi que “na nossa perceção, as empresas portuguesas e não portuguesas que encontrámos e que trabalham sobre participação, melhoraram bastante a performance e tornaram-se mais inteligentes e não apenas meras produtoras de tecnologia”. Atualmente, Giovanni sente-as muito mais aptas a trabalhar ao lado dos municípios, aconselhando-os sobre a melhor forma de implementar Orçamentos Participativos com apoio de plataformas digitais.

Um outro resultado, foi a criação de uma alargada rede de parceiros em todo o mundo: desde os Estados Unidos a Taiwan, de Espanha à Colômbia, de Moçambique ao Brasil. Essa rede ainda mantém vivo o debate.

“diálogo livre e honesto, sem medo de competição, que fizemos com outras plataformas e com vários municípios e outros atores”

A componente de diálogo, aliás, resultou em significativas melhorias para as plataformas participativas existentes. De acordo com Giovanni, quando o projeto iniciou, nenhuma das plataformas comerciais incluíam funcionalidades para acompanhar o orçamento participativo no ciclo da construção. A possibilidade de acompanhar a execução das propostas vencedoras do OP foi uma das grandes novidades do EMPATIA. Atualmente, quase todas as plataformas de apoio ao processo de OP já prevêem um módulo para o ciclo de construção. “Elas evoluíram connosco”, diz o académico italiano com orgulho.

Uma das mais fortes parcerias tem sido com o Consul, a plataforma open source desenvolvida inicialmente para o Ayuntamiento de Madrid e hoje muito apoiada pela equipa técnica da autarquia madrilena. A ideia de um módulo de multi-tenancy, que já existia no Decidim (plataforma da autarquia de Barcelona) e foi também desenvolvida para a plataforma EMPATIA, foi também já criado para o Consul, fruto do debate e troca de experiências promovidos.

A associação Transparência e Integridade (TIAC) é também exemplo de uma parceria de sucesso. Desde 2013 que a TIAC publica anualmente o Índice de Transparência Municipal (ITM). Ainda que bem recebido por uns, o ITM era muito criticado por ser demasiado teórico e porque muitas autarquias sentiam que o principal propósito da TIAC era “pendurar os municípios pelo pescoço para os humilhar publicamente por não fazer a transparência que deveria”.

Fruto da parceria estabelecida entre a TIAC e o EMPATIA, o Índice de Transparência Municipal passou a ser apresentado nos eventos que o projeto realizou em Portugal. Num palco criado por um projeto bem acolhido, foi mais fácil gerar o diálogo em torno no ITM. Consequência: a TIAC deu-se conta de que alguns dos indicadores não eram realistas e os municípios ofereceram contributos para ajudar a melhorar o ITM. A última edição do ITM mostrou melhorias significativas por parte de municípios que se haviam envolvido ativamente neste debate.

“A transformação conjunta que tivemos com todas as entidades envolvidas foi muito enriquecedora”

Do ponto de vista pessoal, Giovanni Allegretti vai levar deste projeto uma nova leitura da tecnologia. “Eu era um tecnocético antes deste projeto. Hoje em dia considero ter aprendido a utilidade da tecnologia, embora fique com a ideia de que só os híbridos é que garantem o melhor resultado: em termos de construção de comunidade, de construção de transparência e da intensidade de participação.”

 

Conclusões

Uma das conclusões é que, por vezes, os obstáculos vêm de onde menos se espera. O caráter obrigatório do Regulamento Geral de Proteção de Dados a partir de maio de 2018, criou sérias dores de cabeça às entidades envolvidas nos pilotos. Na verdade, as plataformas participativas também são plataformas de gestão de dados e, como tal, têm de ser devidamente zeladas para proteger esses dados. Esta responsabilidade acaba por ser um desafio, especialmente aos municípios pequenos, que carecem de pessoal administrativo com a disponibilidade e as competências necessárias, e de orçamento para resolver a situação de outra forma. Assim, o RGPD acabou por dificultar a utilização do EMPATIA justamente pelas autarquias às quais ele mais se destinava.

A equipa de projeto acredita que a solução passará pelas regiões intermunicipais que poderão criar condições: infraestrutura, e formação sobre plataformas abertas e sobre como garantir o respeito pelo RGPD nessas mesmas plataformas.

Uma das coisas que mais surpreendeu a equipa do EMPATIA foi “a vontade dos municípios, e de todos os atores que estão envolvidos em participação, em querer crescer, aprender, testar”. Prova disso foi a energia e os recursos que acabaram por investir todos os 18 pilotos que não estavam inicialmente previstos.

“O setor privado não é surdo, que ele pode também mudar, evoluir, aprender da academia e que a academia pode tornar-se mais prática, mais compreensiva dos mecanismos reais”

Persiste uma enorme contradição entre os muitos requisitos do mercado que empurram para plataformas digitais simplificadas e padronizadas, e os custos de plataformas que garantem a possibilidade de uma configuração definida conjuntamente com os seus futuros utilizadores.

A equipa concluiu também que garantir a sustentabilidade financeira da plataforma é uma questão complexa. Assim, no atual mercado, pobre em produtos inovadores para participação, é crítico assegurar canais de financiamento para garantir a criação e melhoria de produtos abertos, gratuitos e éticos.

Finalmente, e deveras animador, “as pessoas querem contribuir para a melhoria dos sistemas de participação que utilizam”.

Publicado por:

   Ana Neves
Sócia e Diretora Geral da Knowman, empresa de consultoria nas áreas de gestão de conhecimento, comunidades de prática, ferramentas sociais e participação cívica digital. É uma das organizadoras do evento Cidadania 2.0 e a pessoa responsável pela plataforma Cidadania 2.0.

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